Era para o primeiro texto do ano ser sobre fé no ser humano e tal. Mas precisei escrever o texto abaixo. Ele é um grito contra adolescentes de 15/16 anos imersos em ideologias, respeitáveis obviamente, de forma fanática. Há meninos dessa idade que não conseguem pensar na possibilidade de o outro estar correto, que não conseguem discutir, formular argumentos. Esse lamento é raivoso e triste. Não é contra eles, é contra um sistema politico-religioso que faz essas pessoas assim. Pessoas que tem acesso a ciência, mas que a veem apenas como um meio de fugir da pobreza e não como fonte de informações para uma vida melhor, uma interpretação racional da vida. Esse texto não vai mudar nada, eu sei, mas são minhas raiva e imaginação em palavras contra esse tipo de pensamento. É triste ter aulas com doutores mas sair da sala quando ouve a palavra sexo. Esse pensamento está mais próximo de nós que pensamos.
Feliz 2012, com muita reflexão e aprendizado para todos nós.
Segue o texto:
Andava com todos seus orgulhos e fracassos. E não tinha uma bolsinha de orgulhos e fracassos, andava com eles misturados à pele, ao sangue, às vísceras. Eles, os orgulhos e os fracassos, eram parte dela, eram seu caráter, suas ações; era a moça, em orgulhos e fracassos.
A cada dia se enchia mais de derrotas, vitórias, maldades, bondades. E nada de bolsinha, iam todos para sua pele, seu sangue, sua alma. Andava com a pressa e a obstinação de quem tem um objetivo. E a mulher tinha.
Como se acreditasse no andar e andar, até as solas não aguentarem, até o sangue manchar o asfalto e a dor ser insuportável, até não haver mais pés, até serem asfalto e pé uma só coisa e serem mais que um amontoado de preto e vermelho, asfalto e sangue; serem um ser, não vivo por ser um sinal da morte.
A mulher não andava como louca pela cidade com os pés descalços. O parágrafo acima é só figura de linguagem, embora não se distinga tanto da realidade. A mulher andava de ônibus e de carro e de pés, e usava tênis e sandálias e solas. E o sangue não era de feridas de seu corpo, era de algo mais profundo. E a mulher nem sentia.
Viveu como ser humano qualquer, normal de norma, comum de comunidade. De dizer bom dia e boa tarde a todos. E todo existencialismo proveniente de sua vida - esta narrativa, por exemplo, - não fora percebido pela interessada. Fez o ciclo completo: nasceu, cresceu, reproduziu e morreu. E não percebeu, como todos. Devia estar ocupada demais vivendo.
Quando morreu não se surpreendeu, mas creio que o faria. Não havia céu eterno e nem fogo eterno. Havia sono eterno, - e mais uma vez é só uma figura de linguagem - embora ela não percebesse, de novo.
Na verdade, e agora sem figura de linguagem, havia o nada, eterno. Havia o mesmo que há no sono, quando não há sonho, aquele vazio que ninguém explica, aquele preto.
Além do nada, havia pessoas chorando em volta do túmulo. Amigos, filhos, desconhecidos. Choro e tristeza. E havia os erros que não foram cometidos, os pecados não executados, as vontades que ficaram no passado, as paixões nunca realizadas, enfim: havia vida que não fora vivida.
Havia os erros e belezas de uma vida que não fora vivida. Erros e acertos marcados pelo medo, pela crença incontestável em algo, que poderia puni-la, que poderia enviá-la para o inferno se gostasse de outras meninas ou mesmo se falasse com gays. Ateísmo? Assunto proibido. Outras religiôes? Melhor nem falar nisso. Pensar? "Menina, você quer ser fisgada pelo inimigo?!"
E a mulher jazia ali e não se arrependia porque não podia, porque matéria orgânica não se arrepende, porque adubo não pensa e no túmulo só havia trabalho: decompositores a todo vapor. No balanço ficou uma vida vivida sem plenitude, sem pensar, com amarras para o sentir. E a vida, já que morreu, se esgotou, e ficou, portanto, apenas a não plenitude, a falta.
As crianças dos orfanatos que visitava, os irmãos da igreja, seguiram em frente. Sem a alma caridosa que tanto os ajudou. A mulher não. Agora era apenas uma mistura fedida de nutrientes para o sólo.E deus nem entrou na história.