sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Domingo no Centro

Não gosto de escrever ou ler coisas grandes, então espero que a leitura não seja massante. Quanto aos parágrafos, não consegui inserir.


A mulher anda desnorteada. E nem há sul, leste ou oeste. A chuva é intensa e o barulho é infernal, embora isso pouco importe. O vestido de molhado já pesa. As mãos sobre a barriga para esconder a vergonha. Os transeuntes, escassos em domingo no Centro, olham a moça assustados. Há lágrimas, mas a chuva as engole e não podemos vê-las.

A água sai do olho e já é seqüestrada bueiro a baixo. É natural, segue seu rumo. Só a moça ali não faz parte do cenário, é ser estranho, é fora, é descompasso. E agora, já nem desfruta da paz da solidão.

Em sua barriga há um peso, que não pesa. Há um fardo, que é fato, mas o destino muda e daqui a não muito será passado, será só memória, pesadelo. E mais depois ainda, será nem isso, que o esquecimento é presente de deus.

A moça carrega um filho. O feto se alimenta dela, depende inteiramente da mãe para viver. É algo valioso que ali cresce e se desenvolve. E é esse algo que dá importância, sentido ao corpo antes vazio. Agora tudo que a mulher é, é pelo filho. Agora a moça tem um filho e isso não pode mudar. O fato beira a verdade absoluta. Beira.

Dentro de seu corpo há um ser tentando destruí-la. É um bicho nojento que começou mínimo e agora já dá sinal de importância. É um vírus que a come por dentro, dia após dia. Que come toda e qualquer parte de tudo que a mulher tem, é como uma tênia, uma solitária, um micróbio qualquer. É uma cicatriz que cresce de dentro para fora.

A chuva ainda é intensa e a noite é cada vez mais escura. Os transeuntes agora são raros como milagres. Nem putas, nem viados, nem viados gordos chupando paus de meninos magros, nem moleques de rua, nem nada. Só a chuva. E agora uma calçada que parece seca e quente.

Imersa em água, frio, tristeza e medo a moça adormece. E não dorme de sonhar, não dorme de dormir. Só dorme porque a língua não oferece verbo melhor. Não sabe se sonhou, ou é tudo verdade. Ou se dormiu ou se nem acordou. Sabe apenas que continua molhada, com frio, medo e tristeza, e esses, se não fossem quem são, seriam seus melhores amigos. Ou pelo menos os mais presentes.

A barriga não incomoda, mas a cabeça não para de pensar. E é ódio, raiva, tristeza, surpresa, desespero e muito mais. É e é tudo junto. É aquela cicatriz que cresce de dentro para fora e não pára, que a cada momento a suga mais um pouco de vida, que a mata pouco a pouco, muitos poucos por minuto. É a cicatriz que a arrebenta e a arrebentará até o rebento. É a morte, que já não é caminho a trilhar e sim momento presente.

E é a ausência de moral. É a falta de certo e errado que é cada vez mais presente. E não há só dois caminhos, as possibilidades são infinitas. Mas as conseqüências são incalculáveis e o bom já não se distingue do ruim. É o não saber agir, é o mãos atadas, ou pior, as mãos livres. Totalmente livres, podendo tudo, o bom e o ruim, a morte e a vida. É só desespero.

O vestido já não é tão pesado, e não tão inteiro. O cabelo já não é tão macio, já não tem tanta vida, cor ou brilho. Agora a moça parece da rua e é tão natural da rua quanto qualquer mendigo, enchente ou viado gordo comendo cu de viado novo. Agora é parte do cenário, é só outro objeto qualquer. É parte do asfalto para doutor pisar.

O dia começa a raiar. E pessoas a chegar. Elas trabalham, têm empregos, andam apressadas. Não devem ter cicatrizes nas barrigas, devem ser felizes.

Ao ver uma mulher de saltos passando, a moça se lembrou que fora assim. Não, não fora. Era desses tipos que tinha nojo. Eram esses saltos plataforma que a enojavam.

Então se lembrou de tudo. Da bela casa, da bela família. Da faculdade, da vida que um dia tivera. Se lembrou que um dia fora feliz. E ao pensar em felicidade se viu casada e com filhos, numa bela casa. Prometeu a si mesma que tiraria aquele troço de dentro do útero e limparia bem limpo, para que aquele espaço pudesse receber um dia seu amado filho.

A felicidade começou a dar lugar à raiva. As mãos já não saíam da barriga. E não era massagem. Tentava expelir o feto a próprio punho, as mãos de tanta força já davam socos e não havia dor. Era só um objetivo a ser cumprido. Já não tinha mais forças para bater, para pressionar.

Pessoas ofereciam ajuda, mas a moça respondia com raiva. Era só raiva. Tudo era raiva. Em cada rosto via a figura distorcida daquele filho da puta. As palavras que ouvia se alternavam em: “eu te amo” e “confia em mim”. E os transeuntes balançavam. Iam e vinham igual a ele. O mundo vinha e ia que nem ele, o mundo balançava que nem ele naquela noite. Era só balanço. Tudo era só ir e voltar para ir de novo.

- Confia em mim.
- Prova que você me ama.
-Se entrega para mim esta noite, seja só minha.

O balanço aumentava e aumentava, se aproximava do fim. O gozo já estava próximo. As estocadas finais vindo e aumentando o ritmo. As vozes agora eram simultâneas e a roda à sua volta era grande. Muitas vozes, conversas pararelas, sirenes ao fundo e um grito.

O mais intenso que pôde. Um de rasgar garganta e o que vier pela frente. Um para acabar com o inferno, para que alguém pudesse escutá-la e resgatá-la. Um agudo desafinado como a vida da gente. A Presidente Vargas parou para olhar, o Centro do Rio parou para olhar.

Mas o grito era só grito, era só extravasamento. A criatura continuava lá, viva, pulsando. A cicatriz, o subproduto da noite de gozo, da mão mais assanhada, da liberdade, da confiança, das estocadas, do amor, dos “te amo’’ e “ confia em mim ”, continuava ali.

A mulher tinha de fazer alguma coisa. Precisava parar com aquilo de uma vez por todas. Estava deitada, quase desfalecida. Não havia nada. Olhou a seu redor. Era só uma rua e uma multidão à sua volta, nada mais. Avistou um caco de vidro. Era pequeno mas talvez servisse. Pegou o objeto. Forçou-o contra a barriga. Não sentira dor. Era duro, era difícil. A carne era forte, mas ela era mais. O processo era indolor, doía mais a mão que a barriga. O sangue manchava o chão, eternizava o momento da extirpação daquele demônio. Aos poucos, algo começou a sair da abertura criada pelo caco de vidro. E não tinha nada de bonito, heróico. Era só nojento. Só triste.

Viva alma não teve coragem de ajudar., já os gritos foram muitos. De todas as partes. A moça ouvia os gritos alheios como risadas: aquelas depois da transa. Como “bem feito” e “ eu avisei”, coisas que ela muito escutou. Era moça, e assim devia ter permanecido.

Agora não havia mais feto, nem vida, ou desenvolvimento. Eram só tripas esparramadas no chão. Não havia promessa de futuro, uma semente de luz que pega corpo de gente, eram só tripas esparramadas pelo chão. E nem havia cicatriz de dentro pra fora, encosto ou encarnação do demônio. Eram só tripas esparramadas no chão. Agora sim poderia criar sua família. Casar-se com um bom homem e ter um filho com ele. O mal havia sido extirpado. Doeu, mas agora acabou.

Fazia sol. E as sirenes agora eram para ela.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Versos só apenas.

Há versos que já nascem sem vida.
Que são abortos espontâneos de nascença.
Que nascem sem métrica, ética ou licença poética.
São só cuspe do corpo.
Vômito, escarro, coisa assim.

E destroem o caminho por onde passam.
E matam, só matam.
E vão tímpanos, ouvidos, orelhas, carne e tudo mais.

São morte (mal) traduzida em palavras.
É desmorfia travestida de texto.
Não faz livro, não literária, não é poesia.
Só assassina, é assassina.
Faz chorar, só isso, só faz chorar.
E não chora.

É só.
Só de solidão, só de solitário.
Só de tristeza, e só tristeza em ondas sonoras.
Só de apenas.

É isso: talvez esses versos sejam só apenas.
(Embora pena seja seu começo, meio e fim e então o prefixo de negação já perdeu seu sentido.)