Parte 1
Havia rugas. E marcas e manchas e cicatrizes. E eram só rugas, marcas, manchas e cicatrizes. Não era luta, nem tristeza nem raiva nem dor. Não era um pai morto, uma mãe ausente. Não era o fracasso, a pobreza. Em seu rosto, se via apenas rugas, marcas, manchas e cicatrizes.
Descia a rua com a naturalidade do fazer todos os dias, das pedras de tão frequentes, amigas, que nunca a derrubariam. O andar tinha a tropeguidão das quatro da manhã. Não muita gente agora na rua. Algumas olhavam, outras continuavam em seus próprios assuntos. O cabelo já se desfazia do coque, o suor borrando a maquiagem, as roupas apertando com a calça mostrando mais do que devia: era fim de noite por completo.
Foi ganhando os Arcos da Lapa. O céu enevoado sobre a cabeça e junto com o céu todo o Rio de Janeiro. De plateia só mendigos em sono profundo e nem sequer um ou outro pivete para receber um boquete.
A cabeça estava vazia. Era piloto automático direto para casa. No murmúrio solitário devia reclamar da vida ou ensaiar resposta a algum cliente abusado. E ensaiando que estava, não pôde atuar: sentiu alguém lhe agarrando por trás. As mãos eram fortes e grandes.
-Espera aí, vamos conversar.
O homem não quis conversa. Com as mãos fortes a manteve presa e sua língua explorou a nuca e arredores da moça. Virou-a com força e forçou sua boca contra a da moça, em algo parecido com um beijo. Babado e com arranhões de bigode. Embora acostumada a isso, a moça queria sair, seu expediente já havia terminado. Tentava falar:
-Espera aí, eu sou profissional.
O homem não lhe dava atenção, só queria saber de boca, dentes, beiços e baba. Com as mãos explorava o corpo da moça, já dentro do soutien. Esse não era o primeiro homem corpulento que conhecera, não eram as primeiras mãos nojentas com quem tivera contato, mas a moça estava cansada, e além do mais, ainda não havia combinado seu preço.
A mulher tentava gritar, o homem lhe tapando a boca. Disse em seu ouvido.
-Vamos só fazer um amor gostoso.
A contra gosto, mas já sentindo prazer, prazer a mulher concordou.
-Eu não sou uma mulher qualquer, eu tenho meu preço. E estamos no meio da rua.
-Vou te levar ao meu cafofo.
Enquanto iam a algum lugar, o casal não parou de brincar. Iam bem juntos e o homem ia atrás. A mão sob o soutien da mulher, desnudando seus seios. A mão da moça dentro da calça do policial que tinha o membro para fora. Com a língua do homem em sua nuca, a mulher avistou o céu, e as nuvens haviam se dissipado. Avistou o Teatro Municipal, que parecia saudar os amantes com sua grandiosidade. As sandálias e a garrafa de vodca, que nem foram mencionadas, se perderam em algum ponto da narrativa.
Cruzaram a Cinelândia. Já se podia ver o pequeno posto policial. Da janela viram um policial cochilando em sua cadeira giratória.O homem bateu no vidro. O policial acordou assustado, já empunhando o fuzil que segurava. Abriu a porta.
- Carne nova, sargento?
- Então, soldado, queria que você me quebrasse essa... Sabe como é, não é?....
Queria ter uma privacidade aqui com a menina.
-Ué, a gente não pode dividir?
-Para dois é mais caro, vou logo avisando.
Sargento Gomes concordou com a cabeça:
- Hoje você vai ser a alegria dos Papa Mike.
Parte 2
Perdera o pai em um cochilo. Assistira (a) seu agonizar por longo tempo mas o sono foi mais forte e dormiu. Os olhos se fecharam e o pai ainda gemia de dor. Quando o silêncio se fez, acordou de susto. Viu o pai de olhos esbugalhados, as mãos imóveis na tentativa de retirar o respirador, a barba por fazer, a cama de ferro frio de colchão fino e lençol manchado, os dedos contraídos na magreza de dias de cama.
O velho afogado em sua biles amarelo ovo. Os olhos abertos encarando a luz branca do quarto que o impedia de ter paz. Ao ver seu pai, a moça sentiu um golpe. Um golpe e um alívio. O calvário havia terminado. De olhar cabisbaixo pôs a mão na testa do pai. Tentou rezar um pai nosso. Não conseguiu. Se lembrava apenas de algumas frases da oração. Com uma lágrima nos olhos, fechou os olhos do pai. Pegou suas coisas calmamente e saiu. Foi ao posto das enfermeiras e disse:
- Meu pai morreu.
A expressão do velho ao morrer não tinha nada a ver com sua cara nas noites de farra, quando chegava bêbado acordando os filhos. A camisa molhada de suor, o pano justo sobre a barriga peluda. Ia cambaleando direto ao quarto possuir a mulher. E a menina se levantava, sorrateiramente, com cuidado para não acordar os irmãos, arrastava a cômoda e punha os ouvidos na parede para escutar os gemidos da mãe. Os gritos da mãe lhe davam prazer e inveja. Não entendia como o pai se interessava por aquela mulher gorda e velha, de depilação atrasada e amarras sexuais. E com as mãos sob a cueca substituía o membro do pai, se esquecendo da raiva, da inveja, tendo só prazer. Imaginando o pai a possuindo, a amando, e a fazendo mulher.
Aos poucos foi desenvolvendo algo ruim pela mãe. Um misto de inveja, ódio e, é claro, amor. A situação piorou de vez quando a mãe soube que andava se envolvendo com outros meninos. Acordou-a com a raiva nas fazes rubras de gritar. A menina, de cabelos para cima, acordou apanhando:
- Viado! Viado! Viado!
A mãe pegou-a pela orelha e torceu até a menina levantar. Levou-a à rua ainda em trajes de dormir. A menina em lágrimas de humilhação. Portão a fora, foi gritando:
- Margareth! Margareth!
Uma mulher pôs o rosto para fora de uma janela.
- O que foi?
Sentiu muita raiva ao ver o rosto da mulher surgir na janela, mas agora poderia desmascarar aquela fofoqueira.
- Aqui está meu filho. Quero ver você dizer o que disse na frente dele.
Ao filho:
- É verdade, o que ela disse? É verdade que você estava chupando o pau de um menino ontem na praça?
O filho ficou em silêncio. A mulher continuava a apertar a orelha do filho que continuava a chorar.Apertou mais forte:
- Fala! Fala que essa vaca está mentindo!
O filho continou calado.
- Todo mundo sabe que esse teu filho sempre foi boiola, mulher! Dá licença, que eu tenho mais o que fazer.
Margareth bateu a janela. Constatando o óbvio, a mãe chorou. Largou a orelha do filho, assumia uma postura séria agora, quase austera. Apesar das lágrimas, falou secamente:
- Vai para casa e arruma suas coisas.
A menina obedeceu. Estava triste, humilhada, mas aliviada. Agora sua mãe sabia sobre ela, agora não precisava se esconder, calcular seus movimentos, controlar a munheca e agora, seu pai sabendo que era quase uma mulher, talvez se interessasse por ela, já que era mais jovem e bela que a mãe e poderia satisfazê-lo por completo, sem os limites que a mãe impunha.
Apesar da tristeza, pôs um sorriso no rosto. O mais sensual que conhecia. Prendeu o cabelo cacheado num coque com as mãos e entrou em casa. A mãe chegou logo atrás, esbaforida, gritando pelo marido:
- Paulo! Paulo!
O homem cochilava no sofá. Na sala abafada, apenas dois sofás velhos e uma estante com uma televisão no centro. Na televisão, algum programa esportivo. A menina estava em seu quarto em frente ao espelho se arrumando. Essa era a primeira vez que se mostraria maquiada ao pai, tinha que caprichar. Daquele quarto, não sairia Paulo Júnior, e sim Paula.
Depois de alguma confusão vinda da sala, a menina saiu. O pai, quando a viu, fechou a cara. Estava gritando com a esposa, e ao ver o filho, parou. Não muita raiva, só surpresa e decepção. Um golpe forte no peito, algo não esperado. Engoliu tudo em seco. Em tom seco e sério disse:
-Pega suas coisas e se manda.
E apenas. Voltou ao sofá. Sentou-se e terminou seu programa de esportes. A mulher tentou falar sobre, mas não adiantou. Desse dia em diante sempre que a mulher tocava no assunto, desconversava ou saía. O relacionamento com a mulher tornou-se o pior possível, a ponto de serem só dois estranhos dividindo a cama, e, raramente, o sexo. Paulo Jr. Morrera e eles perderam um filho.
Com as palavras do pai, a menina tivera suas ilusões destruídas, o mundo caíra em suas costas. Não pegou muito, apenas algumas maquiagens. As roupas de menino deixou para trás. Não levou nada que pudesse remeter àquela casa, ao território de Paulo Jr. Foi ganhar a vida, ganhar a noite. Saíra de casa Paulinha, e para nunca mais voltar.
Já estabilizada e com seus demônios controlados, alguns anos depois, Paula soube que o pai estava internado em um hospital público. Depois de pensar bastante, foi visitá-lo. Percebendo o total abandono, passou a cuidar do velho, passando a quase morar no hospital. O velho já não falava e conviver com ele era fácil. Quando viu o filho pela primeira vez nem esboçou reação. Talvez pensasse ser alguma enfermeira nova, ou talvez nem pensasse.
Nos banhos desenvolveram seu amor. Apesar do que houvera, Paula ainda nutria algo por seu pai, ou pela figura máscula e forte que habitara aquela casa. Suas fantasias de menino deram origem a um caso de amor: um pai e seu filho, um velho e uma travesti, uma puta e um vegetal: apenas dois amantes. O velho apenas gemia e o amor durou pouco. Em pouco tempo o pênis mole e as fezes sem controle fizeram nascer em Paula um nojo sem igual. Passara a apenas limpar e cuidar do pai.
Não muito tempo depois, chegou o cochilo.
Parte 3
No sexo anal, sargento Gomes percebeu algo sob a calcinha. Pensando que a mulher estava muito excitada, pôs-se a acariciar o volume por cima do pano. Paula sentiu prazer e não se preocupou, pensando que o homem, obviamente, sabia com quem estava lidando. Sentindo o volume crescer o policial desconfiou. Arrancou a calcinha da mulher e pôde ver o pênis, grande e cheio de veias, nascer.
Se assustou e guardou seu membro, ainda ereto e sujo, rapidamente. Se levantou em descompasso, gritando com a mulher. O soldado, que acompanhava a cena não conseguia parar de rir.
- Então é esse o tipo de menina que você gosta, sargento?
- Essa vadia me enganou.
A mulher surpresa e assustada, ainda no chão tentando cobrir o sexo, tentava argumentar:
- Eu pensei que você soubesse.
O amigo nunca o deixaria em paz, esse fato iria desonrá-lo para sempre. Sargento Gomes foi tomado por uma raiva sem igual, fazendo-o bufar e corar as faces:
- Você vai me pagar, seu viado escroto!
O sargento começou a chutar e pisar a moça no chão, que tentava, inutilmente, se defender com as mãos sobre a cabeça, em gritos de desespero. O soldado ficou assustado. O sangue começou a escorrer.
- Você está maluco? E o que a gente vai fazer com o corpo desse viado?
Sem parar de bater, o sargento respondeu:
- A gente dá um jeito.
E o soldado pôs-se a bater também.
Em pouco tempo a mulher já era silêncio e os chutes eram chutes em uma poça de sangue. Começaram a limpar a desgraça e puseram o corpo no camburão. Depois de pouco mais de uma hora, já haviam despejado o corpo em algum córrego da baixada fluminense.
Quanto a Paula, seguiu o rumo natural da vida. Seu corpo não demorou muito a se desfazer, sendo alimento para incontáveis microorganismos e alguns urubus. Suas moléculas, átomos, aminoácidos, etc, estão por aí. Nos rios, nas plantas, no ar, por aí, sob nós, sobre nós. E Paula depois de morta permaneceu onde sempre esteve: por aí.
Menino quer mostrar seus textículos ao mundo. Esse é seu espaço. Lembremos que são textículos literários, não outros. Literatura de qualidade duvidosa.
quarta-feira, 30 de novembro de 2011
terça-feira, 1 de novembro de 2011
O homem e o rapaz.
De uns tempos pra cá não tirava aquela expressão do rosto. Uma expressão de vazio, de papel branco a ser preenchido. Aquela cara que facilmente era substituída pela tristeza ou alegria, aquela cara de estado intermediário, de espera. Era com essa cara que andava nas ruas. Devia ser essa sua cara de andar nas ruas. E era com essa cara de andar nas ruas, que andava nas ruas, cheias de pessoas que andavam nas ruas com suas caras de andar nas ruas.
Agora voltava de mais um dia de trabalho. Pasta sob os braços e fones nos ouvidos. Vestia óculos e roupas sociais. Em caminho contrário ao seu, vinha um rapaz. Bermuda, camisa e chinelos. E, é claro, mais sua cara de andar nas ruas.
O rapaz o fitou vacilante (apenas o olhara, e olhar é um gesto normal de andar nas ruas). Nada de mais. Os olhos do rapaz saltaram do homem para o posto policial, que tinha as portas cerradas. Do posto policial, os olhos voltaram para o homem. E não saíram mais de lá.
Veio em caminhada rápida, sem porquê aparente. O homem se assustou, porque agora nada mais era normal do modo de andar nas ruas. Não houve tempo para reação. Apenas as mãos saltaram ao peito, mas era puro instinto. Assustado e surpreso, ouviu:
-Perdeu.
Sua inércia deixou o rapaz sem ação e os anúncios de perda foram seguidos e desenfreados:
-Perdeu, meu irmão. Vambora, passa tudo, meu irmão.
Quando retomou o pensar, só vieram raiva e tristeza à cabeça, e essas acabaram com a inércia: o homem agarrou o rapaz pela camisa e o forçou contra o muro. Já não tinha o mesmo olhar permissivo e desinteressado de antes. Era raiva por completo, dos dentes cerrados às veias saltando. O rapaz atônito tentava se libertar, mas as mãos eram fortes, eram intransponíveis.
O homem parecia em alguma espécie de transe. Como se a raiva não fosse só sobre aquele rapaz, que agora parecia vítima, aprisionado nos grossos e grosseiros braços de um brutamontes. Sentia toda a raiva do mundo, era a raiva. Era um quase humano transbordando de raiva.
-Você queria me assaltar, seu merda?
O homem falava pausadamente, e as palavras tinham dificuldade de passar entre seus dentes cerrados.
-Você não viu que estava em frente a um posto policial, seu idiota?
Falava com o vigor de tentar ensinar algo, mas a raiva ainda dominava.
- Você não sabe que eles vão enfiar uma porra grossa no teu cu até você confessar uma porrada de crimes que tu nem conhece?
Falava alto, sem se preocupar com o aglomerado que já se formava.
-Tinha que se sujar?
Gritava.
-Por causa de que?
O rapaz, completamente perplexo, não esboçava reação. Parecia em estado de choque. Apenas os olhos, mais que arregalados, não saíam dos olhos do homem.
O homem jogou o rapaz ferozmente ao chão e começou a despejar o conteúdo de sua pasta sobre o rapaz.
- O que você queria? Uma caneta? Uma agenda? Esses papeis.
O rapaz agora estava deitado sobre o chão. Os olhos fechados, as lágrimas sem espaço pra cair. Todos os papeis da pasta sobre o rapaz, formando um montante branco com pontos pretos, as letras e frestas do corpo do rapaz. Um grande aglomerado em volta, todos sérios e assustados. Alguns celulares filmando. O homem parecia possuído, e não era pelo diabo.
- Você tem passagem?
O menino não respondeu. O homem o pegou pelos ombros e o forçou contra o muro novamente.
-Tem passagem ou não, seu merda?
O menino fez que não com a cabeça, chorando. E as lágrimas eram de ambos os lados. O homem chorava um choro duro, que custava a sair. Era um choro de indignação, de revolta. Aquele rapaz era na verdade um menino. Tão menino quanto seu menino. Chorava por haver meninos e meninos, nas ruas e nas casas.
Devolveu o menino ao chão, que talvez fosse seu lugar, e o fez raivosamente.
- Você quer dinheiro, seu merda?
Pegou a carteira e despejou as notas sobre o garoto. Todas. Fez questão de jogar as moedas também, inclusive as que estavam em seu bolso. Jogava com força, com raiva. Eram esses os golpes que ainda não havia dado.
- É isso que você queria, seu merda?
O garoto fazia que não com a cabeça, em um murmúrio incompreensível de lágrimas e palavras.
- Pronto. Você já tem o que queria. Pode ir.
O menino não moveu dedo. Continuava em seu murmúrio sem signifcado, em um movimento de não com a cabeça, como se lamentasse. E lamentava.
-Leva! Leva! Vai seu merda! Você já tem o que queria.
Diante da imobilidade do garoto, o homem lhe chutou. E mais forte, e mais forte e de novo e de novo. E foram por todo o corpo, da cabeça aos pés, sem controle, numa espontaneidade assustadora de tão violenta. Eram chutes de desespero.
Parou quando percebeu que seus chutes já eram gesto automático, sem vida. Já eram ida e vinda de pé, e não chutes. Parou quando sentiu o pé doer e a dormência chegar. Quando percebeu que já não chutava um rapaz ou um menino, e sim que jogava os pés sobre uma massa vermelha e suja que espirrava algo, que se parecia com sangue.
As pessoas em volta do ocorrido tinham agora o terror instalado em seus rostos. O homem as encarou. Uma por uma, olho por olho. E palavra não fora dita. Agachou-se vagarosamente. Recolheu todos os pertences e os arrumou cuidadosamente em sua pasta. Pegou seus óculos que haviam caído e com o blusão limpou as lentes sujas de sangue. Levantou-se o mais reto possível, e ao levantar já tinha a mesma cara de andar nas ruas de antes. Recolocou os fones . Todos deram passagem e os olhares o seguiram por um bom pedaço.
Um policial chegou para saber o que havia ocorrido. Fitava a todos, mas o silêncio foi tudo o que conseguiu. Quando perguntava mais diretamente o policial ouvia:
- Não sei, não senhor.
E com as perguntas a aglomeração se dissipou. O policial fez o de praxe. Telefonemas e telefonemas. E agora o único que não tinha a mesma cara de andar nas ruas era o morto.
Agora voltava de mais um dia de trabalho. Pasta sob os braços e fones nos ouvidos. Vestia óculos e roupas sociais. Em caminho contrário ao seu, vinha um rapaz. Bermuda, camisa e chinelos. E, é claro, mais sua cara de andar nas ruas.
O rapaz o fitou vacilante (apenas o olhara, e olhar é um gesto normal de andar nas ruas). Nada de mais. Os olhos do rapaz saltaram do homem para o posto policial, que tinha as portas cerradas. Do posto policial, os olhos voltaram para o homem. E não saíram mais de lá.
Veio em caminhada rápida, sem porquê aparente. O homem se assustou, porque agora nada mais era normal do modo de andar nas ruas. Não houve tempo para reação. Apenas as mãos saltaram ao peito, mas era puro instinto. Assustado e surpreso, ouviu:
-Perdeu.
Sua inércia deixou o rapaz sem ação e os anúncios de perda foram seguidos e desenfreados:
-Perdeu, meu irmão. Vambora, passa tudo, meu irmão.
Quando retomou o pensar, só vieram raiva e tristeza à cabeça, e essas acabaram com a inércia: o homem agarrou o rapaz pela camisa e o forçou contra o muro. Já não tinha o mesmo olhar permissivo e desinteressado de antes. Era raiva por completo, dos dentes cerrados às veias saltando. O rapaz atônito tentava se libertar, mas as mãos eram fortes, eram intransponíveis.
O homem parecia em alguma espécie de transe. Como se a raiva não fosse só sobre aquele rapaz, que agora parecia vítima, aprisionado nos grossos e grosseiros braços de um brutamontes. Sentia toda a raiva do mundo, era a raiva. Era um quase humano transbordando de raiva.
-Você queria me assaltar, seu merda?
O homem falava pausadamente, e as palavras tinham dificuldade de passar entre seus dentes cerrados.
-Você não viu que estava em frente a um posto policial, seu idiota?
Falava com o vigor de tentar ensinar algo, mas a raiva ainda dominava.
- Você não sabe que eles vão enfiar uma porra grossa no teu cu até você confessar uma porrada de crimes que tu nem conhece?
Falava alto, sem se preocupar com o aglomerado que já se formava.
-Tinha que se sujar?
Gritava.
-Por causa de que?
O rapaz, completamente perplexo, não esboçava reação. Parecia em estado de choque. Apenas os olhos, mais que arregalados, não saíam dos olhos do homem.
O homem jogou o rapaz ferozmente ao chão e começou a despejar o conteúdo de sua pasta sobre o rapaz.
- O que você queria? Uma caneta? Uma agenda? Esses papeis.
O rapaz agora estava deitado sobre o chão. Os olhos fechados, as lágrimas sem espaço pra cair. Todos os papeis da pasta sobre o rapaz, formando um montante branco com pontos pretos, as letras e frestas do corpo do rapaz. Um grande aglomerado em volta, todos sérios e assustados. Alguns celulares filmando. O homem parecia possuído, e não era pelo diabo.
- Você tem passagem?
O menino não respondeu. O homem o pegou pelos ombros e o forçou contra o muro novamente.
-Tem passagem ou não, seu merda?
O menino fez que não com a cabeça, chorando. E as lágrimas eram de ambos os lados. O homem chorava um choro duro, que custava a sair. Era um choro de indignação, de revolta. Aquele rapaz era na verdade um menino. Tão menino quanto seu menino. Chorava por haver meninos e meninos, nas ruas e nas casas.
Devolveu o menino ao chão, que talvez fosse seu lugar, e o fez raivosamente.
- Você quer dinheiro, seu merda?
Pegou a carteira e despejou as notas sobre o garoto. Todas. Fez questão de jogar as moedas também, inclusive as que estavam em seu bolso. Jogava com força, com raiva. Eram esses os golpes que ainda não havia dado.
- É isso que você queria, seu merda?
O garoto fazia que não com a cabeça, em um murmúrio incompreensível de lágrimas e palavras.
- Pronto. Você já tem o que queria. Pode ir.
O menino não moveu dedo. Continuava em seu murmúrio sem signifcado, em um movimento de não com a cabeça, como se lamentasse. E lamentava.
-Leva! Leva! Vai seu merda! Você já tem o que queria.
Diante da imobilidade do garoto, o homem lhe chutou. E mais forte, e mais forte e de novo e de novo. E foram por todo o corpo, da cabeça aos pés, sem controle, numa espontaneidade assustadora de tão violenta. Eram chutes de desespero.
Parou quando percebeu que seus chutes já eram gesto automático, sem vida. Já eram ida e vinda de pé, e não chutes. Parou quando sentiu o pé doer e a dormência chegar. Quando percebeu que já não chutava um rapaz ou um menino, e sim que jogava os pés sobre uma massa vermelha e suja que espirrava algo, que se parecia com sangue.
As pessoas em volta do ocorrido tinham agora o terror instalado em seus rostos. O homem as encarou. Uma por uma, olho por olho. E palavra não fora dita. Agachou-se vagarosamente. Recolheu todos os pertences e os arrumou cuidadosamente em sua pasta. Pegou seus óculos que haviam caído e com o blusão limpou as lentes sujas de sangue. Levantou-se o mais reto possível, e ao levantar já tinha a mesma cara de andar nas ruas de antes. Recolocou os fones . Todos deram passagem e os olhares o seguiram por um bom pedaço.
Um policial chegou para saber o que havia ocorrido. Fitava a todos, mas o silêncio foi tudo o que conseguiu. Quando perguntava mais diretamente o policial ouvia:
- Não sei, não senhor.
E com as perguntas a aglomeração se dissipou. O policial fez o de praxe. Telefonemas e telefonemas. E agora o único que não tinha a mesma cara de andar nas ruas era o morto.
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