terça-feira, 1 de novembro de 2011

O homem e o rapaz.

De uns tempos pra cá não tirava aquela expressão do rosto. Uma expressão de vazio, de papel branco a ser preenchido. Aquela cara que facilmente era substituída pela tristeza ou alegria, aquela cara de estado intermediário, de espera. Era com essa cara que andava nas ruas. Devia ser essa sua cara de andar nas ruas. E era com essa cara de andar nas ruas, que andava nas ruas, cheias de pessoas que andavam nas ruas com suas caras de andar nas ruas.

Agora voltava de mais um dia de trabalho. Pasta sob os braços e fones nos ouvidos. Vestia óculos e roupas sociais. Em caminho contrário ao seu, vinha um rapaz. Bermuda, camisa e chinelos. E, é claro, mais sua cara de andar nas ruas.

O rapaz o fitou vacilante (apenas o olhara, e olhar é um gesto normal de andar nas ruas). Nada de mais. Os olhos do rapaz saltaram do homem para o posto policial, que tinha as portas cerradas. Do posto policial, os olhos voltaram para o homem. E não saíram mais de lá.

Veio em caminhada rápida, sem porquê aparente. O homem se assustou, porque agora nada mais era normal do modo de andar nas ruas. Não houve tempo para reação. Apenas as mãos saltaram ao peito, mas era puro instinto. Assustado e surpreso, ouviu:

-Perdeu.

Sua inércia deixou o rapaz sem ação e os anúncios de perda foram seguidos e desenfreados:

-Perdeu, meu irmão. Vambora, passa tudo, meu irmão.

Quando retomou o pensar, só vieram raiva e tristeza à cabeça, e essas acabaram com a inércia: o homem agarrou o rapaz pela camisa e o forçou contra o muro. Já não tinha o mesmo olhar permissivo e desinteressado de antes. Era raiva por completo, dos dentes cerrados às veias saltando. O rapaz atônito tentava se libertar, mas as mãos eram fortes, eram intransponíveis.

O homem parecia em alguma espécie de transe. Como se a raiva não fosse só sobre aquele rapaz, que agora parecia vítima, aprisionado nos grossos e grosseiros braços de um brutamontes. Sentia toda a raiva do mundo, era a raiva. Era um quase humano transbordando de raiva.

-Você queria me assaltar, seu merda?

O homem falava pausadamente, e as palavras tinham dificuldade de passar entre seus dentes cerrados.

-Você não viu que estava em frente a um posto policial, seu idiota?

Falava com o vigor de tentar ensinar algo, mas a raiva ainda dominava.

- Você não sabe que eles vão enfiar uma porra grossa no teu cu até você confessar uma porrada de crimes que tu nem conhece?

Falava alto, sem se preocupar com o aglomerado que já se formava.

-Tinha que se sujar?

Gritava.

-Por causa de que?

O rapaz, completamente perplexo, não esboçava reação. Parecia em estado de choque. Apenas os olhos, mais que arregalados, não saíam dos olhos do homem.
O homem jogou o rapaz ferozmente ao chão e começou a despejar o conteúdo de sua pasta sobre o rapaz.

- O que você queria? Uma caneta? Uma agenda? Esses papeis.

O rapaz agora estava deitado sobre o chão. Os olhos fechados, as lágrimas sem espaço pra cair. Todos os papeis da pasta sobre o rapaz, formando um montante branco com pontos pretos, as letras e frestas do corpo do rapaz. Um grande aglomerado em volta, todos sérios e assustados. Alguns celulares filmando. O homem parecia possuído, e não era pelo diabo.

- Você tem passagem?

O menino não respondeu. O homem o pegou pelos ombros e o forçou contra o muro novamente.

-Tem passagem ou não, seu merda?

O menino fez que não com a cabeça, chorando. E as lágrimas eram de ambos os lados. O homem chorava um choro duro, que custava a sair. Era um choro de indignação, de revolta. Aquele rapaz era na verdade um menino. Tão menino quanto seu menino. Chorava por haver meninos e meninos, nas ruas e nas casas.

Devolveu o menino ao chão, que talvez fosse seu lugar, e o fez raivosamente.

- Você quer dinheiro, seu merda?

Pegou a carteira e despejou as notas sobre o garoto. Todas. Fez questão de jogar as moedas também, inclusive as que estavam em seu bolso. Jogava com força, com raiva. Eram esses os golpes que ainda não havia dado.

- É isso que você queria, seu merda?

O garoto fazia que não com a cabeça, em um murmúrio incompreensível de lágrimas e palavras.

- Pronto. Você já tem o que queria. Pode ir.

O menino não moveu dedo. Continuava em seu murmúrio sem signifcado, em um movimento de não com a cabeça, como se lamentasse. E lamentava.

-Leva! Leva! Vai seu merda! Você já tem o que queria.

Diante da imobilidade do garoto, o homem lhe chutou. E mais forte, e mais forte e de novo e de novo. E foram por todo o corpo, da cabeça aos pés, sem controle, numa espontaneidade assustadora de tão violenta. Eram chutes de desespero.

Parou quando percebeu que seus chutes já eram gesto automático, sem vida. Já eram ida e vinda de pé, e não chutes. Parou quando sentiu o pé doer e a dormência chegar. Quando percebeu que já não chutava um rapaz ou um menino, e sim que jogava os pés sobre uma massa vermelha e suja que espirrava algo, que se parecia com sangue.

As pessoas em volta do ocorrido tinham agora o terror instalado em seus rostos. O homem as encarou. Uma por uma, olho por olho. E palavra não fora dita. Agachou-se vagarosamente. Recolheu todos os pertences e os arrumou cuidadosamente em sua pasta. Pegou seus óculos que haviam caído e com o blusão limpou as lentes sujas de sangue. Levantou-se o mais reto possível, e ao levantar já tinha a mesma cara de andar nas ruas de antes. Recolocou os fones . Todos deram passagem e os olhares o seguiram por um bom pedaço.

Um policial chegou para saber o que havia ocorrido. Fitava a todos, mas o silêncio foi tudo o que conseguiu. Quando perguntava mais diretamente o policial ouvia:

- Não sei, não senhor.

E com as perguntas a aglomeração se dissipou. O policial fez o de praxe. Telefonemas e telefonemas. E agora o único que não tinha a mesma cara de andar nas ruas era o morto.

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